Às vezes penso que estou tentando me iludir, que não estou vivendo esses momentos. Meu olhar é de uma estranha acompanhando pari passu o desenrolar de uma situação que nunca passaria pela minha cabeça viver.
Não sou eu...Essa não é a minha história.
Na calada da noite, enquanto o sono foge e todos dormem tento recompor os cenários que absurdamente passei a ser a protagonista. Primeiro meu nódulo e o medo do desconhecido, da morte, da partida antecipada. Todos morreremos, mas nunca acreditamos nisso. A efemeridade faz parte da vida, mas adiamos até em pensamentos. Vi meu mundo cair. Temi não ver a Anaterra crescer, não acompanhar o Raul até a maturidade ou minha mãe até o fim de sua vida. Sempre acreditamos que eles irão antes. Naqueles dias de grande angústia, sentia-me mais fortalecida porque o Manoel estaria cuidando deles no caso de eu ter que ir antes. Ele sempre fora um pai presente. Desses que dão os primeiros banhos nos filhos, que participam ativamente das reuniões na escola, que conhecem os amigos dos filhos, que apanha aqui e deixa ali. Nunca concordou que contratássemos transporte escolar. Poderia ir mais tranqüila, ele ficaria tomando conta dos meninos.
Como somos presunçosos ... Imaginamos que temos esse poder de decidir, de planejar e executar todos os planos. O que estava reservado para nós era justamente o inverso.
No reveion, em Ajuruteua, uma bela praia paraense no Salgado, choramos pela minha doença, pelo medo dela voltar, de haver recidiva, metástase. Não comentávamos abertamente sobre a probabilidade de durante a nova cirurgia o quadro se agravar, de ser pior do que queríamos.
Como poderíamos cogitar que sete meses depois ele é que nos deixaria ? Justo ele: o forte, o saudável, o que dormia pouco, o que não adoecia, o que não tinha ressaca. A doente sempre fui eu. Motivo para discussões sobre a necessidade dele se cuidar mais, ser mais responsável com a saúde. Desnecessário, segundo ele, pela sua performance.
Uma dengue, um exame de sangue e o diagnóstico. Meu câncer passou a ser insignificante diante da leucemia, quase sempre fatal. Bastou eu entrar na Internet, antes mesmo de retornar para Belém para ter noção da gravidade. As chances de cura em adultos são mínimas, mas isso não era impedimento para desistir. Onde era possível brigar pela vida ? Em São Paulo ? Então vamos lá. Nem dei tempo para que ele pensasse. Procurei os médicos, o hospital e o apoio da Embrapa e uma semana depois ele já estava em tratamento e eu solicitando minha transferência para São Carlos.
Precisava montar uma casa, encontrar uma escola para os meninos, decidir o que levar de Belém pra São Carlos, trazer a mamãe, obter mais um prolongamento do prazo para finalizar a monografia e ainda cuidar dele. Conseguiria ? Nem pensei !! Fiz.
Hoje olho pra trás e me surpreendo. Fiz mesmo ?
Vivo outros momentos agora com a calma começando a reinar, já temos uma rotina. Pouco depois das 6 horas da manhã, estranhando o frio, Raul e Anaterra acordam. Eu e mamãe preparamos a mesa do café e depois saem para o colégio. Já andam sozinhos de ônibus pela cidade e aos poucos vão se enturmando.
Enquanto ficam refazendo suas amizades, eu “brinco” de casinha. Nunca tive muito tempo (nem muita afinidade) com os serviços domésticos, à exceção da cozinha, meu lugar preferido. Mas sei fazer tudo e isso é que está me salvando agora nesse período de transição, de conhecimento da cidade e seus serviços. Ainda sem máquina de lavar tenho ido para o tanque diariamente, o que já deve estar trazendo problemas para o meu braço esquerdo operado em janeiro. O esforço tem causado algumas dores.
Limpeza de banheiro, almoço, jantar e arrumações que não acabam tudo. É preciso encontrar lugar pra tudo.
Não me queixo. Não lamento, apenas constato a diferença.
Sou agora mãe em tempo integral. Nunca imaginei também que um dia seria !!
Mas devo permanecer por muito tempo.
Trabalho desde os 17 anos. Poucas vezes fiquei sem uma atividade profissional que me envolvesse e já sinto falta. Segunda-feira vou ter o primeiro contato com a Embrapa Instrumentação Agropecuária, uma das Unidades localizadas em São Carlos. As boas-vindas dos colegas da área de comunicação me deixam menos apreensiva. Acho que vai dar certo.
Um convite para participar, final de agosto de um evento da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental em São Paulo e outro para estar no Paraná, em outubro, me revigoram, me dão a certeza de que estou viva, que vou superar, com a ajuda do trabalho, esses momentos de dor e de saudade que vão e voltam e machucam e dilaceram.
Na segunda-feira passada eu, Raul e Anaterra fomos ao centro comprar coisinhas que faltam em nosso novo lar. Ao passarmos na frente de uma loja a música do Ed Motta, “Manoel foi pro céu. Manoeeeelllll “ nos sufocou. Rimos emocionados.
Na vitrine, logo adiante, uma recomendação de presente para o papai: uma camisa preta e branca, listrada, exatamente como uma que ele tem.
Mais tarde, em busca de um táxi, o único disponível era o pequeno Fiesta Street, como o que tínhamos até maio. Entramos e sentimos de novo o desconforto de sermos tão grandes e termos que nos apertar nele, como fazíamos com o Manoel ao volante. Mais lembranças ...O motorista, falante e simpático, quis saber de onde éramos. O sotaque nos denunciava. Aos poucos fomos comentando nossa odisséia e ele sensibilizado se colocou à disposição para qualquer coisa. Deixou seu cartão com a recomendação de o procurarmos. O nome ? Manoel !!!
O comentário do Raul resumiu: ele está fazendo tudo para que a gente não o esqueça. Isso será possível ? Não acredito !!
Espero que a dor amenize, que essa sensação de vazio e os momentos em que penso que voltaremos para São Paulo em breve e que o encontraremos tentando sorrir, mesmo que o olhar seja de tristeza ou que um dia venha a dividir esse espaço conosco, dê lugar a uma doce lembrança, que predominem os bons momentos que agora passam como um filme já distante em minha mente.
Hoje à noite o Ruy, Doris, Ana Julia e Sula chegam a São Carlos. Vamos nos reunir amanhã em uma missa na Igreja de Santo Expedito (o santo de devoção do Manoel) e no domingo, um almoço especial marcará o dia dos pais. O Ruy o substituirá nos abraços, mas este será sempre o dia dele, afinal um pai como ele pode existir sim, mas melhor, duvido !!!
Quem sou eu
- Ruth Rendeiro
- Belém/Ribeirão Preto, Brazil
- Amazônida jornalista, belemense papa-xibé. Mãe, filha, amiga... Que escreve sobre tudo e todos há décadas. Com lid ou sem lid e que insiste em aprender mais e mais... infinitamente... Até a morte
Aos que me visitam
Sintam-se em casa. Sentem no sofá, no chão ou nessa cadeira aí. Ouçam a música que quiser, comam o que tiver e bebam o que puderem.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Antes de sair me dê um abraço, um afago e me permita um beijo.
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5 comentários:
Acompaño ese dolor y admiro cada día más tanta fortaleza, tanta capacidad de amar y de luchar...
Olá,
Que Deus te mantenha sempre forte. Continuamos por aqui, na torcida. E, se precisar, já sabe: é só dizer o que precisa, se estiver ao nosso alcance, faremos tudo pra tornar esses momentos menos dolorosos.
Grande abraço,
Ana Mirtes
Te admiro mais ainda Ruth. Vc é uma pessoa muito iluminada e auxiliada, com certeza, por Deus.
Muita conscidência o Manoeeelll...
imagino o que vcs sentiram.
Hoje pela manhã no café comentei com meu marido como vcs passariam este dia. E fiquei contente dos amigos que vc citou estarem hj com vcs ai.
Boa semana e fiquem bem!
bjs
Jesus
Ñ sei se a frase "antes tarde do que nunca" compensa o fato de ainda ñ ter deixado em seu blog o meu carinho pelo recente e doloroso fato. Mas infelizmente, apenas soube da notícia, ontem, no ensaio da formatura.
Antes que prossiga, deixe-me dizer: quem aqui escreve é a Carol Saboia, sua ex-aluna (quem dera sempre fosse!) da Faz.
Ontem, fiz uma bobagem, mas ñ foi minha intensão. Comentei com alguns amigos: "Gente, agora que estamos de férias, a correria passou e todos estamos menos tensos, vamos marcar um dia para visitar a Ruth. Poderíamos vê-la, alguém sabe o endereço da casa dela?". Branquela eu já sou, mas acredito ter ficado ainda mais quando uma colega falou: "Nossa, vc ñ sabe mesmo o que aconteceu ñ é?!". Minha palidez marcou o ensaio. Somente pensava: "Meu Deus! Como, quando, onde?". Mais ainda "por quê?".
Uma vez me falaram que a vida era injusta. Lembrei disso enquanto ouvia outras vozes dizendo: "onde fica meu paraninfo? eu fico antes ou depois de vc?". Mas em casa, com muito mais calma, tb pensei: "Seria realmente justiça uma pessoa sofrer aos poucos diante de seus filhos?". Sim, Deus é justo, pena que a justiça, às vezes, seja tão dolorsa. Pior que a dor da perda, é a dor da saudade. Saudade do riso, do choro, da voz, do silêncio, do abraço, do toque de mão, do olhar, saudade até de quando a gente ñ tinha saudade.
Desejo que o tempo a conforte, conforte a seus filhos. A recaída, por conta da saudade, é inevitável, mas as alegrias vividas compensam as tristezas deixadas!
Bjos pra vc!
hj mas que nunca necessito de uma palavra amiga, do jeito que estou, tenho medo de entrar em depressão sinto falta de muitas coisas na minha vida, mas principalmente de uma amizade verdadeira.
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