Não sei exatamente há quantos dias os médicos sentenciaram o Manoel, deram um prazo para que a vida dele se esvaísse lentamente. A vida retornou, contudo. O que parecia só piorar, melhorou substancialmente e novos planos começam a ser feitos. Sabemos que as chances de uma cura ainda são remotas, mas o quadro evoluiu tão bem que a equipe já recomeça a cogitar a terceira quimioterapia.
Insisti para que o setor de psicologia também entrasse no tratamento.Sou defensora fervorosa desses profissionais e da forte e às vezes vital interferência que têm no âmbito geral. Ele estava depressivo, fica muitas horas calado, pensativo, uma característica que sempre me incomodou durante esses anos de convivência, talvez porque verbalize tudo com muita facilidade. Explodo por pouco, choro por muito e rio com intensidade. Não guardo nada !! Ele não !!
A grande movimentação no quarto nos últimos meses ajudou no tratamento. Mamãe e Rulton chegaram. Nova emoção. Nova certeza de que não está só, que conquistou definitivamente toda a família. Rimos juntos, lembramos passagens homéricas vividas ao longo desses anos e várias vezes nos entristecemos também. A saudade é grande e a distância só agrava essa carência que se manifesta em rostos, corpos, cores, cheiros, sabores.
Os amigos da Embrapa, os vizinhos de Canudos, os parentes, nossa casa, nossa cozinha e guloseimas regionais, os pequeninos Leonardo e Thomas, tudo parece ter uma dimensão enorme demais. As lembranças são tão fortes.
Eu, mamãe, Rulton, Anaterra e Raul, que já parecia um grupo grande demais, aumentou com a chegada do Ruy, Dóris e Ana Júlia que vieram de Leme passar o domingo conosco. Uma comemoração meio atrasada pelo aniversário do Ruy e Dóris transcorrido na semana passada.
Mais alegria para o Manoel ...
Um domingo que incluiu, além do hospital, um pouco de culturas boliviana e japonesa. Começamos indo de metrô para feira Kantuta que reúne a culinária e o artesanato da Bolívia. Saboreamos alguns pratos exóticos e depois seguimos para a praça da Liberdade para degustar outras delícias, agora japonesas e aprender um pouco mais sobre essa rica cultura. Rimos, brincamos, andamos demais e por alguns momentos tínhamos a ilusória impressão que estávamos em férias, fazendo turismo em São Paulo. Um passeio que nunca aconteceu antes e que certamente não existiria se tudo estivesse transcorrendo dentro da normalidade. As intercorrências vieram sem que pedíssemos, mas temos tentado tirar dela o que de positivo pode nos dar e um dos maiores ganhos tem sido a oportunidade de nos aproximar, de perceber o quanto dependemos emocionalmente um do outro.
Quando estamos próximos e sem problemas, o egoísmo predomina e o tempo fica escasso até mesmo para um telefonema. A tragédia beneficia a priorização das emoções, a solidariedade aflora e os compromissos antes inadiáveis agora podem esperar. Imprescindível neste momento é acalentar, acarinhar e esperar pelas boas novas que certamente virão.
Outras mudanças se aproximam e outros testes de resistência vão nos mover mais uma vez. Depois da partida do Ruy em que as lágrimas surgiram naturalmente no abraço forte e fraterno entre ele e o Rulton e o regresso dele para Belém, amanhã vamos enfim para São Carlos. As aulas dos meninos já começaram. Em princípio imaginamos que isso só aconteceria em agosto e precisamos correr. Eles não podem ser prejudicados. Têm a vida inteira pela frente e precisam estar o melhor preparados possível para enfrentar esse mundo de adulto.
Temo pelo Manoel. Hoje estamos todos aqui, fazendo barulho, brigando, falando alto, sempre tendo novidades. Belém era longe demais e São Carlos parecia assim tão próximo. Uma inverdade quando a hora de partir se aproxima. Sinto-o mais introspectivo que nunca, pensamento distante e certamente uma saudade antecipada que dilacera. Este é o mundo dele agora. Um mundo limitado a quatro paredes, um aparelho de TV, um frigobar e muita gente de branco. Um mundo pequeno e sem graça justo na mágica São Paulo, a que não dorme, a que surpreende, a que emociona, a que evolui.
Não gostaria de estar vivendo tudo isso. Provavelmente estaria revoltada em constatar mais uma vez que a nossa vida é só nossa. A ninguém mais pertence. Voltarei a ter uma rotina que embora inclua médicos periodicamente (ontem estive em Campinas para as primeiras consultar pós braquiterapia com o oncologista e radioterapeuta e depois virão ainda o mastologista, nutricionista e a psicooncológica) terão muitos atrativos. Voltarei a ter contato com meu mundo profissional, conhecerei novas pessoas, novos lugares, uma casa que está me esperando pra receber meu toque e muitos planos que incluem viagens, cursos (ministrando ou sendo aluna), os filhos que me estressam e me fazem feliz na mesma proporção. Mas e ele ? Não posso esmorecer, entristecer, demonstrar que também sentiremos demais esse afastamento. Estamos vendo ele diariamente, acompanhando cada evolução, uma interrupção que se estenderá até o domingo Dia dos Pais. Precisamos pensar em um presente mais simbólico do que nunca. Não está usando quase nenhuma roupa, nenhum sapato ou perfume ...Muita criatividade para marcar a data.
Agora é hora de refazer de novo as malas e sonhar com o cantinho novo. Uma mistura de saudade com o prazer de recomeçar.
Quem sou eu
- Ruth Rendeiro
- Belém/Ribeirão Preto, Brazil
- Amazônida jornalista, belemense papa-xibé. Mãe, filha, amiga... Que escreve sobre tudo e todos há décadas. Com lid ou sem lid e que insiste em aprender mais e mais... infinitamente... Até a morte
Aos que me visitam
Sintam-se em casa. Sentem no sofá, no chão ou nessa cadeira aí. Ouçam a música que quiser, comam o que tiver e bebam o que puderem.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Antes de sair me dê um abraço, um afago e me permita um beijo.
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8 comentários:
Já é a terceira vez que deixo comentários a vc. e não sei se vc. os recebeu. Me dê sinal de fumaça.
Estou Bem.
Beijos
Guilherme
Cizinho
Oi Ruth!
Ha muito que eu queria me comunicar, ligar, mas me faltava coragem voce sabe o quanto me emociono então eu preferia ficar sabendo das noticias aqui, não deixo de pensar um só dia sequer em vocês pelo grande problema que você está passando, eu fiz a novena de Sto Antonio e todos os dias eu pedia pela saude de vocês e também da Sra. do Perpertuo Socorro e Radio Nazaré que eu escuto e dá a benção dos doentes que Deus te dê muita força e ao Manoel também as crianças que tão jovesn estão já enfrentando um problemas tão doloroso. Ruth admiro a sua força li todos os depoimentos e juro que fiquei muito emocionada ele vai sair dessa tenho fé em Deus e que Deus te abencoe continue sendo a guerreira que você esta sendo só Deus para te dá tanta força.
Um beijo carinhoso no seu coração e do Manoel.
Dirce
Oi Ruth,
Imagino o que vc está passando, mas Deus está com vc e estamos rezando para que tudo possa dar certo.
Conte conosco, estamos aqui para lhe ajudar.
Bjs.
Socorro Tavares
Minha flor!
Sinto pelo Manoel! Eu posso imaginar como você e as crianças estão se sentindo...
Mas que bom que vocês tiveram bons momentos juntos principalmente alegria nos últimos dias apesar de toda a situação.
Gosto muito de você e das crianças e estou aqui pro que der e vier.
Tentei ligar no seu celular hoje de manhã, mas não completou a ligação.
Fique a vontade pra pedir o que quiser, nem que seja só o ombro.
beijocas,
Soraya
21 3622 9736
21 9881 0535
21 2285 5412
Ruthinha,
Tu, Manoel e os meninos estão nas preces diárias aqui de casa, rogando a Deus muita energia, coragem e fé para todos vocês. Esta é uma prova de travessia difícil, mas da qual vocês sairão mais fortalecidos e vitoriosos.
Vamos confiar, porque vocês estão recebendo ajuda não apenas do plano terreno, mas certamente do plano espiritual, amparados pelas ondas de preces e de amor que vocês têm sabido conquistar ao longo da vida.
Um grande beijo desta tua amiga-sempre,
Lívia
Ruth querida,
A lembrança mais viva de ti e do Manoel juntos foi um alegre encontro nosso no caranguejo da Doca. A gente chegando, vcs de saída. Rápidas risadas e o prazer de encontrar cúmplices desse vício de sentar à mesa, quebrar os danados dos crustáceos e jogar conversa fora. São essas as lembranças que eu guardo do Manoel.
Eu sei o que é perder quem se ama, mas a dor de cada um é a dor de cada.
Minhas orações por ti e pelas crianças.
Fica com Deus.
Um bjo.
Ruth,
Rezo por vocês, foram todos muito corajosos nessa batalha. Tu és uma pessoa muito iluminada, Deus vai te abençoar e às crianças nesse momento, vai te ajudar nesse caminho. Fica bem, são muitas preces pelo Manoel, e agora ele vai ficar em paz, com toda a nossa energia, saudade e amor.
Eu penso muito em vocês e desejo muita paz, fica com Deus e recebe o meu abraço, em ti na Anaterra, no Raul...
Bjo,
Marcello Gabbay.
Ruth,
Sua palavras fortes, amorosas e intensas, comovem a todos nós que acompanhamos sua luta através do blog, após o que sou levada por intensa emoção a reafirmar para você o nosso - de todos nós -destino e condição inexpugnável e tentativas de um drible.
Por quê? por que eu? por que comigo? por que aqui e agora?
E não vale só para doença e morte, mas para tudo o que nos traz dor e sofrimento, multiplicado conforme o tempo a que somos submetidos ao infortúnio.
Há vários tipos de perda, dolorosas,externas, internas, inexplicáveis e incomparáveis,
- sei, nada tão decisivo quanto à morte, anulação de possibilidades.
E aí Ruth, outra determinação ancestral, anterior e exterior a tudo que nos rodeia, nos traz outro e mais outro e mais outro amanhecer, com infinitas possibilidades pertinentes à vida, que independente de nossos "emperreios" - e de quem nos acompanha - continua a latejar em nossos membros, pensamentos e sensações ao longo de nosso corpo, limite/ponto de partida de nossa i-materialidade.
Ontem, hoje, amanhã, cedo ou tarde, topamos sem querer, sem pedir, sem esperar, com uma pedra no meio do caminho, desde então, lembrando e aprendendo com você o salto mortal a nos livrar da danação eterna enquanto gente.
Valha-nos Ruth!!!
Heliana Martins Lima
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