Quem sou eu

Belém/Ribeirão Preto, Brazil
Amazônida jornalista, belemense papa-xibé. Mãe, filha, amiga... Que escreve sobre tudo e todos há décadas. Com lid ou sem lid e que insiste em aprender mais e mais... infinitamente... Até a morte

Aos que me visitam

Sintam-se em casa. Sentem no sofá, no chão ou nessa cadeira aí. Ouçam a música que quiser, comam o que tiver e bebam o que puderem.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Antes de sair me dê um abraço, um afago e me permita um beijo.

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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Domingo quase feliz

Junto com o diagnóstico da leucemia recebemos os conselhos dos que conhecem essa doença de perto de que acima de tudo deveríamos ter fé e paciência. Mas é preciso viver pra entender o que queriam dizer. Ninguém vive pelo outro, ninguém conhece a dor de ninguém. Ela é única, individualizada, totalmente pessoal. Agora lembro com exatidão dessas palavras. Cada dia tem sido um dia diferente desde que passamos a ter esse cotidiano de hospital com o Manoel. Pequenas vitórias são comemoradas efusivamente logo seguidas de prostração, de falta de ar, de sonolência angustiante e tosse com sangue que amedronta.
Felizmente desde segunda-feira temos presenciado grandes melhoras. O retorno da alimentação mereceu muitos aplausos e vivas. São apenas uma sopa líquida, mingau, leite, chá, sucos e biscoitos maisena. Sabia que era um teste. A alimentação intravenosa poderia se tornar de novo única se algo saísse errado, felizmente isso não aconteceu. Como mães de recém-nascidos acompanhamos ansiosamente cada fezes que chegam. Avaliamos a cor, textura e, principalmente, se há algum vestígio de sangue. Tudo o que não queremos.
Sei que o quadro ainda é muito grave. Enquanto a equipe se esmera para debelar o fungo no pulmão, que o leva a usar constantemente o cateter condutor de oxigênio e a fazer exercícios para fortalecer os pulmões, os blastos se multiplicam em sua medula e nada se pode fazer neste momento para tentar conter esse avanço. Tenho conversado muito com a equipe médica e eles não escondem a gravidade, o risco do quadro se tornar irreversível, mas ao mesmo tempo não desistem. Tratam o Manoel como se ele estivesse apenas com uma forte gripe. Cada novidade é comunicada com entusiasmo. O pessoal da enfermagem é atencioso, paciente e muito preparado para lidar com pacientes nesse estágio. Felizmente ele é um bom paciente. Obediente, educado e bem humorado. Raras vezes fica pra baixo, sorumbático ou demonstra estar entregando os pontos. Embora bem mais tranqüila, sei que ainda não podemos comemorar.
Pergunto-me quanto tempo teremos que viver nesses corredores, entre médicos e enfermeiros. Antecipo-me em tentar imaginar como ele ficará quando tivermos que ir para São Carlos. QUando estávamos em Belém achávamos São Carlos tão perto, mas agora, diante da proximidade da partida, os 300 km parecem os memos 3 mil que nos separavam quando estávamos em Belém.
Certamente sentirá o que senti quando descobri meu câncer e ficava sozinha em casa enquanto o Manoel ia trabalhar, o Raul e Anaterra para a escola, mamãe saia e a solidão tomava conta de mim. Descobri naqueles dias que não têm quase nenhuma similaridade com o que o Manoel vive neste momento cheio de remédios pendurados ao seu lado como uma grande árvore de natal, que somos sozinhos, que nosso mundo é só nosso, mesmo que os que nos amem se esforcem para entrar nele, participar dessa dor. Só nós sabemos exatamente o que sentimos.
Mesmo com todos esses poréns, mesmo com o medo que toma conta de mim todas as vezes que tomo consciência de que essa melhora não é a definitiva, estou bem. Tenho vivido uma rotina bem diferente de tudo o que marcou meus anos de maturidade: sendo uma doméstica que vai à feira, cozinha, lava pratos e roupas e à tarde/noite vira uma enfermeira que auxilia na hora de urinar, de comer ou de tossir. Que passa hidratante no corpo agora magro e repleto de hematomas e busca na Internet assuntos que possam distraí-lo.
Amanhã nossa rotina mudará com a chegada da mamãe e do Rulton. Imagino a ansiedade dos dois. Dizem que sou louca, que mexo com a vida de todo mundo, que não vejo limite para o que faço. Pode ser, mas sempre acreditei que não devemos ter ponto final. No máximo ponto em seguida.
Saí de Belém, aluguei uma casinha em São Carlos que aos poucos vai se tornando um lar, estou agora com os dois filhos em um pequeno flat no bairro da Liberdade, economizando como nunca fiz em toda a minha vida (levo água mineral do hospital para o hotel e trago torradas e manteiga do hotel para o hospital), mas nada há de me desanimar.
Amanhã estaremos de novo todos juntos. A família que a doença afastou se reunirá. Coincidentemente amanhã a Doris faz aniversário e depois de amanhã o Ruy. Estamos nos organizando para ter um domingo quase feliz. Um almoço que só não terá a presença física da Ruthlene, mas que comemorará a vida, a esperança, a alegria de estamos unidos.
Uma quase felicidade...

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