Não sei exatamente há quantos dias os médicos sentenciaram o Manoel, deram um prazo para que a vida dele se esvaísse lentamente. A vida retornou, contudo. O que parecia só piorar, melhorou substancialmente e novos planos começam a ser feitos. Sabemos que as chances de uma cura ainda são remotas, mas o quadro evoluiu tão bem que a equipe já recomeça a cogitar a terceira quimioterapia.
Insisti para que o setor de psicologia também entrasse no tratamento.Sou defensora fervorosa desses profissionais e da forte e às vezes vital interferência que têm no âmbito geral. Ele estava depressivo, fica muitas horas calado, pensativo, uma característica que sempre me incomodou durante esses anos de convivência, talvez porque verbalize tudo com muita facilidade. Explodo por pouco, choro por muito e rio com intensidade. Não guardo nada !! Ele não !!
A grande movimentação no quarto nos últimos meses ajudou no tratamento. Mamãe e Rulton chegaram. Nova emoção. Nova certeza de que não está só, que conquistou definitivamente toda a família. Rimos juntos, lembramos passagens homéricas vividas ao longo desses anos e várias vezes nos entristecemos também. A saudade é grande e a distância só agrava essa carência que se manifesta em rostos, corpos, cores, cheiros, sabores.
Os amigos da Embrapa, os vizinhos de Canudos, os parentes, nossa casa, nossa cozinha e guloseimas regionais, os pequeninos Leonardo e Thomas, tudo parece ter uma dimensão enorme demais. As lembranças são tão fortes.
Eu, mamãe, Rulton, Anaterra e Raul, que já parecia um grupo grande demais, aumentou com a chegada do Ruy, Dóris e Ana Júlia que vieram de Leme passar o domingo conosco. Uma comemoração meio atrasada pelo aniversário do Ruy e Dóris transcorrido na semana passada.
Mais alegria para o Manoel ...
Um domingo que incluiu, além do hospital, um pouco de culturas boliviana e japonesa. Começamos indo de metrô para feira Kantuta que reúne a culinária e o artesanato da Bolívia. Saboreamos alguns pratos exóticos e depois seguimos para a praça da Liberdade para degustar outras delícias, agora japonesas e aprender um pouco mais sobre essa rica cultura. Rimos, brincamos, andamos demais e por alguns momentos tínhamos a ilusória impressão que estávamos em férias, fazendo turismo em São Paulo. Um passeio que nunca aconteceu antes e que certamente não existiria se tudo estivesse transcorrendo dentro da normalidade. As intercorrências vieram sem que pedíssemos, mas temos tentado tirar dela o que de positivo pode nos dar e um dos maiores ganhos tem sido a oportunidade de nos aproximar, de perceber o quanto dependemos emocionalmente um do outro.
Quando estamos próximos e sem problemas, o egoísmo predomina e o tempo fica escasso até mesmo para um telefonema. A tragédia beneficia a priorização das emoções, a solidariedade aflora e os compromissos antes inadiáveis agora podem esperar. Imprescindível neste momento é acalentar, acarinhar e esperar pelas boas novas que certamente virão.
Outras mudanças se aproximam e outros testes de resistência vão nos mover mais uma vez. Depois da partida do Ruy em que as lágrimas surgiram naturalmente no abraço forte e fraterno entre ele e o Rulton e o regresso dele para Belém, amanhã vamos enfim para São Carlos. As aulas dos meninos já começaram. Em princípio imaginamos que isso só aconteceria em agosto e precisamos correr. Eles não podem ser prejudicados. Têm a vida inteira pela frente e precisam estar o melhor preparados possível para enfrentar esse mundo de adulto.
Temo pelo Manoel. Hoje estamos todos aqui, fazendo barulho, brigando, falando alto, sempre tendo novidades. Belém era longe demais e São Carlos parecia assim tão próximo. Uma inverdade quando a hora de partir se aproxima. Sinto-o mais introspectivo que nunca, pensamento distante e certamente uma saudade antecipada que dilacera. Este é o mundo dele agora. Um mundo limitado a quatro paredes, um aparelho de TV, um frigobar e muita gente de branco. Um mundo pequeno e sem graça justo na mágica São Paulo, a que não dorme, a que surpreende, a que emociona, a que evolui.
Não gostaria de estar vivendo tudo isso. Provavelmente estaria revoltada em constatar mais uma vez que a nossa vida é só nossa. A ninguém mais pertence. Voltarei a ter uma rotina que embora inclua médicos periodicamente (ontem estive em Campinas para as primeiras consultar pós braquiterapia com o oncologista e radioterapeuta e depois virão ainda o mastologista, nutricionista e a psicooncológica) terão muitos atrativos. Voltarei a ter contato com meu mundo profissional, conhecerei novas pessoas, novos lugares, uma casa que está me esperando pra receber meu toque e muitos planos que incluem viagens, cursos (ministrando ou sendo aluna), os filhos que me estressam e me fazem feliz na mesma proporção. Mas e ele ? Não posso esmorecer, entristecer, demonstrar que também sentiremos demais esse afastamento. Estamos vendo ele diariamente, acompanhando cada evolução, uma interrupção que se estenderá até o domingo Dia dos Pais. Precisamos pensar em um presente mais simbólico do que nunca. Não está usando quase nenhuma roupa, nenhum sapato ou perfume ...Muita criatividade para marcar a data.
Agora é hora de refazer de novo as malas e sonhar com o cantinho novo. Uma mistura de saudade com o prazer de recomeçar.
Quem sou eu
- Ruth Rendeiro
- Belém/Ribeirão Preto, Brazil
- Amazônida jornalista, belemense papa-xibé. Mãe, filha, amiga... Que escreve sobre tudo e todos há décadas. Com lid ou sem lid e que insiste em aprender mais e mais... infinitamente... Até a morte
Aos que me visitam
Sintam-se em casa. Sentem no sofá, no chão ou nessa cadeira aí. Ouçam a música que quiser, comam o que tiver e bebam o que puderem.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Entrem...
Isso aqui está se transformando em um pedaço de mim que divido com cada um de vocês.
Antes de sair me dê um abraço, um afago e me permita um beijo.
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terça-feira, 29 de julho de 2008
quarta-feira, 23 de julho de 2008
Domingo quase feliz
Junto com o diagnóstico da leucemia recebemos os conselhos dos que conhecem essa doença de perto de que acima de tudo deveríamos ter fé e paciência. Mas é preciso viver pra entender o que queriam dizer. Ninguém vive pelo outro, ninguém conhece a dor de ninguém. Ela é única, individualizada, totalmente pessoal. Agora lembro com exatidão dessas palavras. Cada dia tem sido um dia diferente desde que passamos a ter esse cotidiano de hospital com o Manoel. Pequenas vitórias são comemoradas efusivamente logo seguidas de prostração, de falta de ar, de sonolência angustiante e tosse com sangue que amedronta.
Felizmente desde segunda-feira temos presenciado grandes melhoras. O retorno da alimentação mereceu muitos aplausos e vivas. São apenas uma sopa líquida, mingau, leite, chá, sucos e biscoitos maisena. Sabia que era um teste. A alimentação intravenosa poderia se tornar de novo única se algo saísse errado, felizmente isso não aconteceu. Como mães de recém-nascidos acompanhamos ansiosamente cada fezes que chegam. Avaliamos a cor, textura e, principalmente, se há algum vestígio de sangue. Tudo o que não queremos.
Sei que o quadro ainda é muito grave. Enquanto a equipe se esmera para debelar o fungo no pulmão, que o leva a usar constantemente o cateter condutor de oxigênio e a fazer exercícios para fortalecer os pulmões, os blastos se multiplicam em sua medula e nada se pode fazer neste momento para tentar conter esse avanço. Tenho conversado muito com a equipe médica e eles não escondem a gravidade, o risco do quadro se tornar irreversível, mas ao mesmo tempo não desistem. Tratam o Manoel como se ele estivesse apenas com uma forte gripe. Cada novidade é comunicada com entusiasmo. O pessoal da enfermagem é atencioso, paciente e muito preparado para lidar com pacientes nesse estágio. Felizmente ele é um bom paciente. Obediente, educado e bem humorado. Raras vezes fica pra baixo, sorumbático ou demonstra estar entregando os pontos. Embora bem mais tranqüila, sei que ainda não podemos comemorar.
Pergunto-me quanto tempo teremos que viver nesses corredores, entre médicos e enfermeiros. Antecipo-me em tentar imaginar como ele ficará quando tivermos que ir para São Carlos. QUando estávamos em Belém achávamos São Carlos tão perto, mas agora, diante da proximidade da partida, os 300 km parecem os memos 3 mil que nos separavam quando estávamos em Belém.
Certamente sentirá o que senti quando descobri meu câncer e ficava sozinha em casa enquanto o Manoel ia trabalhar, o Raul e Anaterra para a escola, mamãe saia e a solidão tomava conta de mim. Descobri naqueles dias que não têm quase nenhuma similaridade com o que o Manoel vive neste momento cheio de remédios pendurados ao seu lado como uma grande árvore de natal, que somos sozinhos, que nosso mundo é só nosso, mesmo que os que nos amem se esforcem para entrar nele, participar dessa dor. Só nós sabemos exatamente o que sentimos.
Mesmo com todos esses poréns, mesmo com o medo que toma conta de mim todas as vezes que tomo consciência de que essa melhora não é a definitiva, estou bem. Tenho vivido uma rotina bem diferente de tudo o que marcou meus anos de maturidade: sendo uma doméstica que vai à feira, cozinha, lava pratos e roupas e à tarde/noite vira uma enfermeira que auxilia na hora de urinar, de comer ou de tossir. Que passa hidratante no corpo agora magro e repleto de hematomas e busca na Internet assuntos que possam distraí-lo.
Amanhã nossa rotina mudará com a chegada da mamãe e do Rulton. Imagino a ansiedade dos dois. Dizem que sou louca, que mexo com a vida de todo mundo, que não vejo limite para o que faço. Pode ser, mas sempre acreditei que não devemos ter ponto final. No máximo ponto em seguida.
Saí de Belém, aluguei uma casinha em São Carlos que aos poucos vai se tornando um lar, estou agora com os dois filhos em um pequeno flat no bairro da Liberdade, economizando como nunca fiz em toda a minha vida (levo água mineral do hospital para o hotel e trago torradas e manteiga do hotel para o hospital), mas nada há de me desanimar.
Amanhã estaremos de novo todos juntos. A família que a doença afastou se reunirá. Coincidentemente amanhã a Doris faz aniversário e depois de amanhã o Ruy. Estamos nos organizando para ter um domingo quase feliz. Um almoço que só não terá a presença física da Ruthlene, mas que comemorará a vida, a esperança, a alegria de estamos unidos.
Uma quase felicidade...
Felizmente desde segunda-feira temos presenciado grandes melhoras. O retorno da alimentação mereceu muitos aplausos e vivas. São apenas uma sopa líquida, mingau, leite, chá, sucos e biscoitos maisena. Sabia que era um teste. A alimentação intravenosa poderia se tornar de novo única se algo saísse errado, felizmente isso não aconteceu. Como mães de recém-nascidos acompanhamos ansiosamente cada fezes que chegam. Avaliamos a cor, textura e, principalmente, se há algum vestígio de sangue. Tudo o que não queremos.
Sei que o quadro ainda é muito grave. Enquanto a equipe se esmera para debelar o fungo no pulmão, que o leva a usar constantemente o cateter condutor de oxigênio e a fazer exercícios para fortalecer os pulmões, os blastos se multiplicam em sua medula e nada se pode fazer neste momento para tentar conter esse avanço. Tenho conversado muito com a equipe médica e eles não escondem a gravidade, o risco do quadro se tornar irreversível, mas ao mesmo tempo não desistem. Tratam o Manoel como se ele estivesse apenas com uma forte gripe. Cada novidade é comunicada com entusiasmo. O pessoal da enfermagem é atencioso, paciente e muito preparado para lidar com pacientes nesse estágio. Felizmente ele é um bom paciente. Obediente, educado e bem humorado. Raras vezes fica pra baixo, sorumbático ou demonstra estar entregando os pontos. Embora bem mais tranqüila, sei que ainda não podemos comemorar.
Pergunto-me quanto tempo teremos que viver nesses corredores, entre médicos e enfermeiros. Antecipo-me em tentar imaginar como ele ficará quando tivermos que ir para São Carlos. QUando estávamos em Belém achávamos São Carlos tão perto, mas agora, diante da proximidade da partida, os 300 km parecem os memos 3 mil que nos separavam quando estávamos em Belém.
Certamente sentirá o que senti quando descobri meu câncer e ficava sozinha em casa enquanto o Manoel ia trabalhar, o Raul e Anaterra para a escola, mamãe saia e a solidão tomava conta de mim. Descobri naqueles dias que não têm quase nenhuma similaridade com o que o Manoel vive neste momento cheio de remédios pendurados ao seu lado como uma grande árvore de natal, que somos sozinhos, que nosso mundo é só nosso, mesmo que os que nos amem se esforcem para entrar nele, participar dessa dor. Só nós sabemos exatamente o que sentimos.
Mesmo com todos esses poréns, mesmo com o medo que toma conta de mim todas as vezes que tomo consciência de que essa melhora não é a definitiva, estou bem. Tenho vivido uma rotina bem diferente de tudo o que marcou meus anos de maturidade: sendo uma doméstica que vai à feira, cozinha, lava pratos e roupas e à tarde/noite vira uma enfermeira que auxilia na hora de urinar, de comer ou de tossir. Que passa hidratante no corpo agora magro e repleto de hematomas e busca na Internet assuntos que possam distraí-lo.
Amanhã nossa rotina mudará com a chegada da mamãe e do Rulton. Imagino a ansiedade dos dois. Dizem que sou louca, que mexo com a vida de todo mundo, que não vejo limite para o que faço. Pode ser, mas sempre acreditei que não devemos ter ponto final. No máximo ponto em seguida.
Saí de Belém, aluguei uma casinha em São Carlos que aos poucos vai se tornando um lar, estou agora com os dois filhos em um pequeno flat no bairro da Liberdade, economizando como nunca fiz em toda a minha vida (levo água mineral do hospital para o hotel e trago torradas e manteiga do hotel para o hospital), mas nada há de me desanimar.
Amanhã estaremos de novo todos juntos. A família que a doença afastou se reunirá. Coincidentemente amanhã a Doris faz aniversário e depois de amanhã o Ruy. Estamos nos organizando para ter um domingo quase feliz. Um almoço que só não terá a presença física da Ruthlene, mas que comemorará a vida, a esperança, a alegria de estamos unidos.
Uma quase felicidade...
domingo, 20 de julho de 2008
Uma casa de faz-de-conta
Não é uma casa, mas um hotel. Não escolhi os móveis. São todos padronizados. Não tem uma foto na parede ou um porta-retrato. Nem um vasinho com flores ou mesmo uma cortina florida. Mas está sendo nosso lar nesses dias. Um quarto comprido com quatro camas (usamos três), um pequeno sofá-cama, um pequeno banheiro e uma mínima cozinha com um fogão sem forno, um frigobar e um minúsculo armário. As meias, cuecas, calcinhas e até blusas estão sendo lavadas na pia do banheiro, mas tenho tentado ver esse espaço impessoal como se neste momento fosse o mais belo de todos os lares. Estamos juntos, próximos ao Manoel. Tenho cozinhado para nós (bife de carne bovina ou filé de frango), arroz integral, salada (eu e a Anaterra comemos bem), ovos cozidos, miojo, atum, salsichas de peru e uma farofa comprada pronta têm sido nossas refeições (não tudo de uma vez, é claro) complementada com sucos, leite, cereais e muitas frutas. Aos poucos vamos tendo uma rotina. Nessas últimas noites o Raul tem dormido no hospital. Dormido não, cochilado ao lado do pai. Mais uma experiência para o enorme rol que tem marcado a vida ainda tão curta do meu filho. É calmo, sereno e otimista. Uma folga necessária ao Pedro, o irmão que tem estado ao lado do Manoel desde que veio de Belém.
Nem mesmo diante de um quadro tão preocupante como ontem, o Raul se abalou. Viu o pai passando mal, ofegante, indisposto, quase sem falar, irritado, nervoso e chorando por qualquer motivo. Nem conseguiu falar com a tia Jorgete que estava em nossa casa abraçando a mamãe pela passagem dos seus 73 anos. Ontem eu vi a morte rondando o quarto 430. Cheguei a pedir que fosse dado um calmante para ele e assim pudesse dormir mais tranqüilamente. Deixei o hospital muito mal, sentindo muito medo de no dia seguinte encontrá-lo pior. Um quarto enorme esperaca eu e a Anaterra. Só nós duas. Sozinhas. Eu mais ainda em meus pensamentos, em meus temores sem ter com quem dividir. Este tem sido um dos maiores desafios. Calar, chorar em silêncio na madrugada, temer e não extravasar. Embora os meninos saibam de tudo, não quero que sofram na mesma proporção que eu. Tenho mais referenciais para comparar, mais informações para visualizar o que não é tão bom. Meus medos são maduros, vivenciados por alguém. O espelho dos 51 anos que me mostra um mundo de muita dor, de falência lenta e gradual, de morte sem acidente, sem gritos, silenciosa, calma.
Sei que não estamos sós. As demonstrações de solidariedade, amizade, carinho, generosidade têm vindo de tantos lugares, de tantas pessoas diferentes. Dos antigos e velhos amigos como os jornalistas que acompanham a minha vida desde muito jovem e os da Embrapa de Belém que nos conhecem há tantos anos, aos vizinhos carinhosos de Canudos que telefonam, que mandam mensagens aos ex-alunos e amigos virtuais (alguns nem tão virtuais assim). Rulton e Ruthlene têm sido incansáveis. Além de estarem cuidando do nosso pequeno, mas valoroso patrimônio que incluiu nos cachorros e gatos, têm se desdobrado pra vender a rifa do notebook e assim minimizar as despesas que não param nunca. Tinha tudo organizado, inclusive as finanças. Fiz tudo muito bem planejado, bem pensado, mas não imaginava que necessitaria ficar tanto tempo em São Paulo. Não cogitei que o Manoel fosse ficar tão debilitado clínica e emocionalmente e que a nossa presença fosse ser vital para ele nesse momento. Despesas com hotel, passagens e alimentação que fugiram do controle e aí entram os amigos, os parentes. As cunhadas Socorro e Dóris têm demonstrado que além dos irmãos, também nos amam muito. A doce Thaís que chama o Manoel de “nosso pai”, tanta gente que seria injusto citar mais algum e certamente cometer erros.
Tem ainda a mamãe, uma tímida e silenciosa guerreira que novamente quer estar ao nosso lado para nos ajudar. Temos sido, nos últimos 16 anos, sua família mais próxima. Está ao lado do Raul desde que ele tinha 1 ano, viu a Anaterra nascer e elegeu o Manoel seu quinto filho. Chora e sofre por ele e por nós. Sabe o quanto é fundamental para nosso equilíbrio. Tê-la ao nosso lado significará um porto seguro que retorna, é a certeza de que poderei chorar no ombro de alguém, comer um bole fofinho e tomar um café de coador. Por isso estamos fazendo tudo para que ela venha o mais breve possível. Se Deus quiser, na próxima semana o Rulton a trará pra junto de nós. Um alívio para todos.
Assim tenho conseguido seguir em frente, pensando sempre nos dias que virão. Neste momento o que mais me incomoda é ter que ficar tanto tempo nesse ambiente de hospital e o com um agravante: um hospital especializado em câncer. Aqui encontro pessoas amputadas, sem mama; cabeças sem cabelos; pele amarelada e corpo esquálido. Tudo o que não quero que aconteça comigo. Um lugar onde a morte é a presença mais freqüente. Hoje algo de grave aconteceu no quarto ao lado. Muita gente, muitos abraços, muitas lágrimas. Não quero ver isso, não quero imaginar que posso viver essas cenas como protagonista.
Daqui a pouco retornarei ao hotel. Mais uma noite. Felizmente hoje o Manoel está mais disposto, menos emotivo, mais confiante e essa confiança nos contagia. Sorri, participa das conversas, interage com o que vê na TV, conversa com os filhos e se interessa pelo que escrevo, pelas mensagens que recebo na Net. Atender ao telefone e conversar com os amigos que o procuram, é sinal de vida, é a certeza de que quer viver, que a vida lateja e pede passagem.
Nem mesmo diante de um quadro tão preocupante como ontem, o Raul se abalou. Viu o pai passando mal, ofegante, indisposto, quase sem falar, irritado, nervoso e chorando por qualquer motivo. Nem conseguiu falar com a tia Jorgete que estava em nossa casa abraçando a mamãe pela passagem dos seus 73 anos. Ontem eu vi a morte rondando o quarto 430. Cheguei a pedir que fosse dado um calmante para ele e assim pudesse dormir mais tranqüilamente. Deixei o hospital muito mal, sentindo muito medo de no dia seguinte encontrá-lo pior. Um quarto enorme esperaca eu e a Anaterra. Só nós duas. Sozinhas. Eu mais ainda em meus pensamentos, em meus temores sem ter com quem dividir. Este tem sido um dos maiores desafios. Calar, chorar em silêncio na madrugada, temer e não extravasar. Embora os meninos saibam de tudo, não quero que sofram na mesma proporção que eu. Tenho mais referenciais para comparar, mais informações para visualizar o que não é tão bom. Meus medos são maduros, vivenciados por alguém. O espelho dos 51 anos que me mostra um mundo de muita dor, de falência lenta e gradual, de morte sem acidente, sem gritos, silenciosa, calma.
Sei que não estamos sós. As demonstrações de solidariedade, amizade, carinho, generosidade têm vindo de tantos lugares, de tantas pessoas diferentes. Dos antigos e velhos amigos como os jornalistas que acompanham a minha vida desde muito jovem e os da Embrapa de Belém que nos conhecem há tantos anos, aos vizinhos carinhosos de Canudos que telefonam, que mandam mensagens aos ex-alunos e amigos virtuais (alguns nem tão virtuais assim). Rulton e Ruthlene têm sido incansáveis. Além de estarem cuidando do nosso pequeno, mas valoroso patrimônio que incluiu nos cachorros e gatos, têm se desdobrado pra vender a rifa do notebook e assim minimizar as despesas que não param nunca. Tinha tudo organizado, inclusive as finanças. Fiz tudo muito bem planejado, bem pensado, mas não imaginava que necessitaria ficar tanto tempo em São Paulo. Não cogitei que o Manoel fosse ficar tão debilitado clínica e emocionalmente e que a nossa presença fosse ser vital para ele nesse momento. Despesas com hotel, passagens e alimentação que fugiram do controle e aí entram os amigos, os parentes. As cunhadas Socorro e Dóris têm demonstrado que além dos irmãos, também nos amam muito. A doce Thaís que chama o Manoel de “nosso pai”, tanta gente que seria injusto citar mais algum e certamente cometer erros.
Tem ainda a mamãe, uma tímida e silenciosa guerreira que novamente quer estar ao nosso lado para nos ajudar. Temos sido, nos últimos 16 anos, sua família mais próxima. Está ao lado do Raul desde que ele tinha 1 ano, viu a Anaterra nascer e elegeu o Manoel seu quinto filho. Chora e sofre por ele e por nós. Sabe o quanto é fundamental para nosso equilíbrio. Tê-la ao nosso lado significará um porto seguro que retorna, é a certeza de que poderei chorar no ombro de alguém, comer um bole fofinho e tomar um café de coador. Por isso estamos fazendo tudo para que ela venha o mais breve possível. Se Deus quiser, na próxima semana o Rulton a trará pra junto de nós. Um alívio para todos.
Assim tenho conseguido seguir em frente, pensando sempre nos dias que virão. Neste momento o que mais me incomoda é ter que ficar tanto tempo nesse ambiente de hospital e o com um agravante: um hospital especializado em câncer. Aqui encontro pessoas amputadas, sem mama; cabeças sem cabelos; pele amarelada e corpo esquálido. Tudo o que não quero que aconteça comigo. Um lugar onde a morte é a presença mais freqüente. Hoje algo de grave aconteceu no quarto ao lado. Muita gente, muitos abraços, muitas lágrimas. Não quero ver isso, não quero imaginar que posso viver essas cenas como protagonista.
Daqui a pouco retornarei ao hotel. Mais uma noite. Felizmente hoje o Manoel está mais disposto, menos emotivo, mais confiante e essa confiança nos contagia. Sorri, participa das conversas, interage com o que vê na TV, conversa com os filhos e se interessa pelo que escrevo, pelas mensagens que recebo na Net. Atender ao telefone e conversar com os amigos que o procuram, é sinal de vida, é a certeza de que quer viver, que a vida lateja e pede passagem.
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Esperança renovada
Os dias agora parecem ter 48 horas ou apenas 12. Passam tão rápido, mas ao mesmo tempo registram tantos acontecimentos que me sinto muitas vezes incapaz de acompanhar cada momento, lembrar de cada fato, registrar cada minuto.
Não escrevo aqui faz alguns dias e parecem séculos. A vida está intensa demais, nem sei o que priorizar. Tenho que pensar na casa sendo montada, na transferência de escola dos meninos, no Manoel no hospital, nas despesas que agora são só minhas, na minha saúde. Eu tive um câncer e preciso monitorar cada órgão para impedir que ele volte. Uma qualidade de vida melhor, menos estressada, com alimentação mais saudável e muitos anos pela frente. Não dá pra relacionar e me deter em apenas um. Todos são prioritários, todos são tão urgentes ...
Pelo menos em São Carlos está tudo bem. Uma etapa vencida ! A casa aos poucos toma jeito de lar. Já tem cama, geladeira, fogão, televisão, mesa e quatro cadeiras (novos!) e um guarda-roupa usado. Dormimos duas noites. As primeiras de centenas. Nem sei definir o que senti. Ao mesmo tempo em que comemorei ter agora um endereço fixo, senti muito falta das minhas coisinhas de Belém, do meu cantinho com a minha cara.
Sempre gostei de juntar tralha, de ter lembrancinhas de lugares, de amigos, de pessoas queridas. Preservei quase tudo que tinha uma história: uma cartinha, um jornal velho, um bonequinho ou uma peça de cerâmica compunham a minha casa, meu retrato de vida. Tantos presentes, tantas recordações dos lugares por onde passei que um dia o Euclides Chembra Bandeira ao visitar meu pequeno cantinho no edifício EL Dourado disse que ele lembrava a velha Casa Salomão, em frente ao Museu Emílio Goeldi: “a gente olha, olha, olha e saí com a impressão de que não viu tudo”. Maior ficou na Roso Danin !
Agora não tenho essas lembranças. Elas ficaram para trás, tornaram-se secundárias. Preciso apenas de um lugar pra dormir, uma mesa pra tomar café e uma geladeira pra guardar os alimentos perecíveis. O que me move agora é a esperança que ansiosamente espero se reflita nos próximos exames do Manoel.
Chegamos hoje a São Paulo e aqui ficaremos até início de agosto. Esse momento é crucial. Se por um lado ele está respondendo muito bem à medicação, respirando sem nenhum auxílio, melhorando a performance dos exercícios respiratórios, reduzindo drasticamente o sangramento nas fezes e com o corpo já totalmente desinchado, por outro sei que isso não é tudo. Embora seja muito, muito mesmo !
Ele terá ainda muitas etapas que o colocarão diversas vezes frente à frente com a morte. O quadro continua grave, mas a sua aparência é excelente, sua disposição comovedora, contagiante. Quer saber tudo, acompanhar cada passo do que já avançamos na nova morada. Tem consciência da gravidade, mas não pensa nela, não é seu foco neste momento. Queria ser assim...
Estou muito dividida. Ao mesmo tempo em que me encho de esperança, em que me apego cada dia mais a Nossa Senhora de Nazaré que tantas vezes já ouviu minhas preces, me entrego às palavras dos médicos, ao veredicto que não me sai da cabeça.
E se de fato ele tiver tão pouco tempo de vida como eles dizem ? Quando será o momento que esse quadro se agravará ? Como terei forças para reagir diante da morte de um pessoa tão especial, tão importante na minha história de vida ? E meus filhos como vou ajudá-los a superar essa partida definitiva?
Cada dia mais ratifico a importância deles na minha vida. Sempre soube disso, mas agora mais do que nunca constato o quanto eles são meu mundo.
Não tive um pai presente. Na verdade a minha referência de pai é a pior possível. Uma pessoa fraca, mentirosa, injusta e que não mediu as conseqüências quando abandonou a mulher com três crianças nascidas e uma em gestação. Lembro-me bem dele, mas não são lembranças saudosas, paternais, felizes. Isso talvez explique o esforço desmesurado que incontrolavelmente faço para que meus filhos tenham seu pai perto e possam usufruir dele. mesmo um pai debilitado em uma cama de hospital. Não me importa o tempo que eles ficarão conosco, o que vale mesmo é a qualidade desse tempo, o que deixaremos de contribuição para o desenvolvimento de cada um, para que de fato sejam cidadãos no sentido mais amplo e belo dessa palavra. Pessoas de bem que valorizem o bem, que cresçam até mesmo com essas experiências tão dramáticas, tão dolorosas que estão sendo obrigados a viver.
Não quero pensar no fim, não quero acalentar a morte, não vou me permitir sofrer mais ainda do que a minha terapeuta um dia diagnosticou com muita precisão: a tal ansiedade antecipatória. Quero apenas viver esses dias, independente de quantos serão, de quantos teremos pela frente. Quero que o Manoel tenha certeza de que sou sua companheira, sua amiga e que ficarei ao lado dele o tempo que for necessário. Minha forma de agradecer por tantos anos de convivência harmoniosa, mesmo com os percalços que marcam a maioria dos casamentos.
Ficaremos 15 dias diretos ao lado dele. Uma decisão difícil e cara, mas que valerá o sacrifício. Precisamos dele e ele mais ainda de nós. Queremos ver a sua evolução, queremos acompanhar pari passu a sua reversão e estar ao lado dele quando as maiores vitórias acontecerem.
Comemorando ...
Não escrevo aqui faz alguns dias e parecem séculos. A vida está intensa demais, nem sei o que priorizar. Tenho que pensar na casa sendo montada, na transferência de escola dos meninos, no Manoel no hospital, nas despesas que agora são só minhas, na minha saúde. Eu tive um câncer e preciso monitorar cada órgão para impedir que ele volte. Uma qualidade de vida melhor, menos estressada, com alimentação mais saudável e muitos anos pela frente. Não dá pra relacionar e me deter em apenas um. Todos são prioritários, todos são tão urgentes ...
Pelo menos em São Carlos está tudo bem. Uma etapa vencida ! A casa aos poucos toma jeito de lar. Já tem cama, geladeira, fogão, televisão, mesa e quatro cadeiras (novos!) e um guarda-roupa usado. Dormimos duas noites. As primeiras de centenas. Nem sei definir o que senti. Ao mesmo tempo em que comemorei ter agora um endereço fixo, senti muito falta das minhas coisinhas de Belém, do meu cantinho com a minha cara.
Sempre gostei de juntar tralha, de ter lembrancinhas de lugares, de amigos, de pessoas queridas. Preservei quase tudo que tinha uma história: uma cartinha, um jornal velho, um bonequinho ou uma peça de cerâmica compunham a minha casa, meu retrato de vida. Tantos presentes, tantas recordações dos lugares por onde passei que um dia o Euclides Chembra Bandeira ao visitar meu pequeno cantinho no edifício EL Dourado disse que ele lembrava a velha Casa Salomão, em frente ao Museu Emílio Goeldi: “a gente olha, olha, olha e saí com a impressão de que não viu tudo”. Maior ficou na Roso Danin !
Agora não tenho essas lembranças. Elas ficaram para trás, tornaram-se secundárias. Preciso apenas de um lugar pra dormir, uma mesa pra tomar café e uma geladeira pra guardar os alimentos perecíveis. O que me move agora é a esperança que ansiosamente espero se reflita nos próximos exames do Manoel.
Chegamos hoje a São Paulo e aqui ficaremos até início de agosto. Esse momento é crucial. Se por um lado ele está respondendo muito bem à medicação, respirando sem nenhum auxílio, melhorando a performance dos exercícios respiratórios, reduzindo drasticamente o sangramento nas fezes e com o corpo já totalmente desinchado, por outro sei que isso não é tudo. Embora seja muito, muito mesmo !
Ele terá ainda muitas etapas que o colocarão diversas vezes frente à frente com a morte. O quadro continua grave, mas a sua aparência é excelente, sua disposição comovedora, contagiante. Quer saber tudo, acompanhar cada passo do que já avançamos na nova morada. Tem consciência da gravidade, mas não pensa nela, não é seu foco neste momento. Queria ser assim...
Estou muito dividida. Ao mesmo tempo em que me encho de esperança, em que me apego cada dia mais a Nossa Senhora de Nazaré que tantas vezes já ouviu minhas preces, me entrego às palavras dos médicos, ao veredicto que não me sai da cabeça.
E se de fato ele tiver tão pouco tempo de vida como eles dizem ? Quando será o momento que esse quadro se agravará ? Como terei forças para reagir diante da morte de um pessoa tão especial, tão importante na minha história de vida ? E meus filhos como vou ajudá-los a superar essa partida definitiva?
Cada dia mais ratifico a importância deles na minha vida. Sempre soube disso, mas agora mais do que nunca constato o quanto eles são meu mundo.
Não tive um pai presente. Na verdade a minha referência de pai é a pior possível. Uma pessoa fraca, mentirosa, injusta e que não mediu as conseqüências quando abandonou a mulher com três crianças nascidas e uma em gestação. Lembro-me bem dele, mas não são lembranças saudosas, paternais, felizes. Isso talvez explique o esforço desmesurado que incontrolavelmente faço para que meus filhos tenham seu pai perto e possam usufruir dele. mesmo um pai debilitado em uma cama de hospital. Não me importa o tempo que eles ficarão conosco, o que vale mesmo é a qualidade desse tempo, o que deixaremos de contribuição para o desenvolvimento de cada um, para que de fato sejam cidadãos no sentido mais amplo e belo dessa palavra. Pessoas de bem que valorizem o bem, que cresçam até mesmo com essas experiências tão dramáticas, tão dolorosas que estão sendo obrigados a viver.
Não quero pensar no fim, não quero acalentar a morte, não vou me permitir sofrer mais ainda do que a minha terapeuta um dia diagnosticou com muita precisão: a tal ansiedade antecipatória. Quero apenas viver esses dias, independente de quantos serão, de quantos teremos pela frente. Quero que o Manoel tenha certeza de que sou sua companheira, sua amiga e que ficarei ao lado dele o tempo que for necessário. Minha forma de agradecer por tantos anos de convivência harmoniosa, mesmo com os percalços que marcam a maioria dos casamentos.
Ficaremos 15 dias diretos ao lado dele. Uma decisão difícil e cara, mas que valerá o sacrifício. Precisamos dele e ele mais ainda de nós. Queremos ver a sua evolução, queremos acompanhar pari passu a sua reversão e estar ao lado dele quando as maiores vitórias acontecerem.
Comemorando ...
sábado, 12 de julho de 2008
Desnorteada
Eu tenho tentado escrever nesses últimos dias até porque escrever, ler e assistir os noticiários de TV são para mim quase um vício. Dependo disso pra viver. Mas o tempo tem sido escasso, a concentração quase inexistente. Só agora apareceu a oportunidade de eu me doar às palavras e através dela arrumar as emoções, tentar entender o mundo desconhecido que se estampa à minha frente.
Nem sei por onde começar. Talvez pela visita a São Carlos, a cidade que em breve se tornará nosso endereço definitivo, nosso lar, meu trabalho, a escola dos meus filhos. Lá tentarei refazer nossas vidas. Uma cidade com características que apaixonam: organizada, desenvolvida e ao mesmo tempo pequena. A pouco mais de 300 km de São Paulo, próximo a Araraquara, rumando em direção a Ribeirão Preto, um canto que respira conhecimento, estudos, tecnologia. Gostei do ambiente e uma casa confortável e pequena deve ser formalmente alugada nesta próxima segunda-feira e com a inestimável ajuda da Dóris na terça começaremos a arrumá-la.
Na quarta quero estar de volta pra SP. Precisamos ficar perto do Manoel. Mais do que nunca! A conversa franca e objetiva que tive com os médicos esses dias me deixou arrasada, sem chão, sem saber onde me apoiar, como agir. Segundo eles, o quadro é muito grave. A infecção que estava no pulmão alcançou o intestino o que os obrigou a suspender qualquer alimentação via oral. Toda alimentação agora é por via intravenosa. Um emaranhado de cateteres se mistura em seu pescoço. Um conduzindo a alimentação, outro os antibióticos, outro a plaqueta quando necessária. Para a equipe médica há pouco por fazer. Um mês, dois meses talvez seja o prazo máximo. A doença é incontrolável.
Nunca pensei que viveria algo semelhante. Ele está aqui ao meu lado, rindo, vendo TV, chamando a atenção dos filhos, fazendo planos para a nossa casa em São Carlos, procurando detalhes sobre a distância SP/São Carlos ou já se programando para passar as datas festivas com o meu irmão Ruy em Leme. É quase impossível segurar as lágrimas ao ouvi-lo dizer que quando estivermos de volta a Belém ou quando a minha mãe chegar com as cachorras que ele tanto gosta. Apenas uma vez me descontrolei, chorei abraçada a ele e porque o vi chorando primeiro. Ele disse que não era nada em especial, não estava triste ou pensando na morte, mas apenas sentiu uma vontade incontrolável de desabafar. Também desabafei, também dei vazão a esse turbilhão de novas emoções. Nossos filhos nos olhando e as lágrimas correndo, inundando nossas almas.
Tento não pensar demais, mas como fugir das palavras dos médicos ? Como esquecer que eles chegam a dizer que ele nem irá para o cti simplesmente porque para lá vão as pessoas que têm alguma chance ?
Meus filhos estão comigo, aqui perto, participam, acompanham, sofrem, amadurecem, mas sem desespero, num nível de compreensão que me surpreende, me orgulha e me dá a certeza de que como pais agimos certo. Temos dois jovens amigos solidários e que não se desestruturam, mesmo diante de tantas mudanças. O novo está em todo canto.
Tento, não sei se inutilmente, de um jeito mais sutil, mais leve, prepará-los para o que não queremos, mas que é uma hipótese e irreversível para a Ciência.
O Raul já tem conhecimento suficiente para entender. Sabe o que é uma septicemia, uma parada respiratória, uma paralisação dos órgãos vitais. Não quer acreditar. Prefere ver tudo isso como uma fase, um momento necessário para a retomada ao tratamento definitivo e o transplante que trará a cura.
Dizer à minha filha de apenas 12 anos que o pai dela em poucos dias pode vir a falecer, dói muito. Mas eu disse. É preciso. Não usei os mesmos termos que os médicos, tentei uma metáfora com as plantas, principalmente neste momento em que ele aparenta estar tão bem. Está lúcido, consciente. Lê, entra na internet, mas como uma frágil plantinha está em uma estufa sendo preservado. As medicações são todas para lhe fortalecer. Não recebe vento, gotas de uma chuva forte ou excesso de sol. Tudo monitorado para que esteja bem. Até quando ? E quando voltar ao seu habitat ? E quando as células desobedientes avançarem ? É um tratamento paliativo que ameniza o sofrimento, prolonga a vida, mas não a preserva.
Os médicos se surpreendem com a força que ele tem de viver, com a esperança inabalável que demonstra em cada ação. Os exames refletem um paciente terminal, mas aqui no quarto tem um homem que, embora visivelmente esteja fraco, careca, pele enrugada, seca, pernas inchadas, hematomas nos braços, está vivo e inserido em nossas vidas, participando ativamente das decisões, sugerindo soluções que variam do desconhecimento com a grande cidade às questões financeiras que têm sido amenizadas pela boa vontade dos amigos que se unem em Belém para passar uma rifa e levantar um dinheiro que amenizará os gastos com passagens e hospedagens.
Quero crer que essa imagem de um homem doente, mas cheio de vida que apenas enfrenta uma etapa difícil de um complexo tratamento, em breve será ratificado nos novos exames. Os exames precisam retratar esse quadro !
Ontem passei na frente da bela igreja de Santo Agostinho, às proximidades do hospital. Entrei e com fé, muita fé, rezei, pedi, agradeci. Coloquei nas mãos de Deus, orei silenciosamente ao pés da cruz de Jesus pelo Manoel, por nós, pelos médicos. Fragilizada roguei que um milagre aconteça e que a infecção desapareça, que ele volte a comer normalmente, que se recupere para receber a nova quimio e dessa forma possamos sonhar com o transplante.
Não quero me entregar à tristeza, mas basta chegar a noite para que minha aparente força se esvaia. Fecho os olhos e revejo momentos importantes de nossas vidas em comum, sobretudo o nascimento dos filhos e sinto-me impotente diante da doença. Não tenho mais o que fazer. Só esperar, rezar, torcer e dar a ele essa companhia. Nós quatro dentro desse quarto de hospital. Na TV os programas que assistíamos em Belém num sábado qualquer, de um ano qualquer. Tanta mudança em tão pouco tempo.
Não consigo controlar minha mente. Ela parece que vai estourar ao misturar o passado, esse presente e um futuro que me parece agora mais sombrio do que imaginei quando fiz tudo para trazê-lo para este hospital. Cenas de nossos peixes assados ou caranguejadas em casa ao lado dos amigos e parentes cedem lugar a entrada e saída de enfermeiras. Elas saberão da gravidade ? O que fazem é só paliativo ? Na cama o amigão de tantos anos está débil, dependente, sonolento, envelhecido. O nariz sangra e a toalha manchada de sangue denota que ainda há dificuldade de coagulação. Vou ao futuro e vejo nossa casa sem ele, nossos filhos sem o pai.
Há alguns dias conversei com o Raul sobre isso. Disse-lhe que se esse for o momento da partida do Manoel, será dolorido, mas antes de tudo precisamos ver o quanto fomos privilegiados por ter convivido com ele. Não teriam um pai melhor. Quero apenas que tenha uma morte digna, sem dor, com os filhos ao lado. Se este for o momento, irá com a certeza do dever cumprido. Foi bom filho, bom irmão, bom marido, bom amigo, bom genro, bom cunhado, bom vizinho, bom colega e principalmente bom pai.
Ainda é cedo para despedidas, mas sinto que me preparo para a hora do adeus. Com lágrimas que escondo, com imagens que me perseguem, com lembranças que nunca se apagarão. Não quero que se vá, mas não tenho o poder de impedir.
Em outros momentos sinto-me uma gigante da fé que acredita no milagre, que espera por ele, que sabe que os médicos sabem muito, mas apenas Deus PODE TUDO !
Nem sei por onde começar. Talvez pela visita a São Carlos, a cidade que em breve se tornará nosso endereço definitivo, nosso lar, meu trabalho, a escola dos meus filhos. Lá tentarei refazer nossas vidas. Uma cidade com características que apaixonam: organizada, desenvolvida e ao mesmo tempo pequena. A pouco mais de 300 km de São Paulo, próximo a Araraquara, rumando em direção a Ribeirão Preto, um canto que respira conhecimento, estudos, tecnologia. Gostei do ambiente e uma casa confortável e pequena deve ser formalmente alugada nesta próxima segunda-feira e com a inestimável ajuda da Dóris na terça começaremos a arrumá-la.
Na quarta quero estar de volta pra SP. Precisamos ficar perto do Manoel. Mais do que nunca! A conversa franca e objetiva que tive com os médicos esses dias me deixou arrasada, sem chão, sem saber onde me apoiar, como agir. Segundo eles, o quadro é muito grave. A infecção que estava no pulmão alcançou o intestino o que os obrigou a suspender qualquer alimentação via oral. Toda alimentação agora é por via intravenosa. Um emaranhado de cateteres se mistura em seu pescoço. Um conduzindo a alimentação, outro os antibióticos, outro a plaqueta quando necessária. Para a equipe médica há pouco por fazer. Um mês, dois meses talvez seja o prazo máximo. A doença é incontrolável.
Nunca pensei que viveria algo semelhante. Ele está aqui ao meu lado, rindo, vendo TV, chamando a atenção dos filhos, fazendo planos para a nossa casa em São Carlos, procurando detalhes sobre a distância SP/São Carlos ou já se programando para passar as datas festivas com o meu irmão Ruy em Leme. É quase impossível segurar as lágrimas ao ouvi-lo dizer que quando estivermos de volta a Belém ou quando a minha mãe chegar com as cachorras que ele tanto gosta. Apenas uma vez me descontrolei, chorei abraçada a ele e porque o vi chorando primeiro. Ele disse que não era nada em especial, não estava triste ou pensando na morte, mas apenas sentiu uma vontade incontrolável de desabafar. Também desabafei, também dei vazão a esse turbilhão de novas emoções. Nossos filhos nos olhando e as lágrimas correndo, inundando nossas almas.
Tento não pensar demais, mas como fugir das palavras dos médicos ? Como esquecer que eles chegam a dizer que ele nem irá para o cti simplesmente porque para lá vão as pessoas que têm alguma chance ?
Meus filhos estão comigo, aqui perto, participam, acompanham, sofrem, amadurecem, mas sem desespero, num nível de compreensão que me surpreende, me orgulha e me dá a certeza de que como pais agimos certo. Temos dois jovens amigos solidários e que não se desestruturam, mesmo diante de tantas mudanças. O novo está em todo canto.
Tento, não sei se inutilmente, de um jeito mais sutil, mais leve, prepará-los para o que não queremos, mas que é uma hipótese e irreversível para a Ciência.
O Raul já tem conhecimento suficiente para entender. Sabe o que é uma septicemia, uma parada respiratória, uma paralisação dos órgãos vitais. Não quer acreditar. Prefere ver tudo isso como uma fase, um momento necessário para a retomada ao tratamento definitivo e o transplante que trará a cura.
Dizer à minha filha de apenas 12 anos que o pai dela em poucos dias pode vir a falecer, dói muito. Mas eu disse. É preciso. Não usei os mesmos termos que os médicos, tentei uma metáfora com as plantas, principalmente neste momento em que ele aparenta estar tão bem. Está lúcido, consciente. Lê, entra na internet, mas como uma frágil plantinha está em uma estufa sendo preservado. As medicações são todas para lhe fortalecer. Não recebe vento, gotas de uma chuva forte ou excesso de sol. Tudo monitorado para que esteja bem. Até quando ? E quando voltar ao seu habitat ? E quando as células desobedientes avançarem ? É um tratamento paliativo que ameniza o sofrimento, prolonga a vida, mas não a preserva.
Os médicos se surpreendem com a força que ele tem de viver, com a esperança inabalável que demonstra em cada ação. Os exames refletem um paciente terminal, mas aqui no quarto tem um homem que, embora visivelmente esteja fraco, careca, pele enrugada, seca, pernas inchadas, hematomas nos braços, está vivo e inserido em nossas vidas, participando ativamente das decisões, sugerindo soluções que variam do desconhecimento com a grande cidade às questões financeiras que têm sido amenizadas pela boa vontade dos amigos que se unem em Belém para passar uma rifa e levantar um dinheiro que amenizará os gastos com passagens e hospedagens.
Quero crer que essa imagem de um homem doente, mas cheio de vida que apenas enfrenta uma etapa difícil de um complexo tratamento, em breve será ratificado nos novos exames. Os exames precisam retratar esse quadro !
Ontem passei na frente da bela igreja de Santo Agostinho, às proximidades do hospital. Entrei e com fé, muita fé, rezei, pedi, agradeci. Coloquei nas mãos de Deus, orei silenciosamente ao pés da cruz de Jesus pelo Manoel, por nós, pelos médicos. Fragilizada roguei que um milagre aconteça e que a infecção desapareça, que ele volte a comer normalmente, que se recupere para receber a nova quimio e dessa forma possamos sonhar com o transplante.
Não quero me entregar à tristeza, mas basta chegar a noite para que minha aparente força se esvaia. Fecho os olhos e revejo momentos importantes de nossas vidas em comum, sobretudo o nascimento dos filhos e sinto-me impotente diante da doença. Não tenho mais o que fazer. Só esperar, rezar, torcer e dar a ele essa companhia. Nós quatro dentro desse quarto de hospital. Na TV os programas que assistíamos em Belém num sábado qualquer, de um ano qualquer. Tanta mudança em tão pouco tempo.
Não consigo controlar minha mente. Ela parece que vai estourar ao misturar o passado, esse presente e um futuro que me parece agora mais sombrio do que imaginei quando fiz tudo para trazê-lo para este hospital. Cenas de nossos peixes assados ou caranguejadas em casa ao lado dos amigos e parentes cedem lugar a entrada e saída de enfermeiras. Elas saberão da gravidade ? O que fazem é só paliativo ? Na cama o amigão de tantos anos está débil, dependente, sonolento, envelhecido. O nariz sangra e a toalha manchada de sangue denota que ainda há dificuldade de coagulação. Vou ao futuro e vejo nossa casa sem ele, nossos filhos sem o pai.
Há alguns dias conversei com o Raul sobre isso. Disse-lhe que se esse for o momento da partida do Manoel, será dolorido, mas antes de tudo precisamos ver o quanto fomos privilegiados por ter convivido com ele. Não teriam um pai melhor. Quero apenas que tenha uma morte digna, sem dor, com os filhos ao lado. Se este for o momento, irá com a certeza do dever cumprido. Foi bom filho, bom irmão, bom marido, bom amigo, bom genro, bom cunhado, bom vizinho, bom colega e principalmente bom pai.
Ainda é cedo para despedidas, mas sinto que me preparo para a hora do adeus. Com lágrimas que escondo, com imagens que me perseguem, com lembranças que nunca se apagarão. Não quero que se vá, mas não tenho o poder de impedir.
Em outros momentos sinto-me uma gigante da fé que acredita no milagre, que espera por ele, que sabe que os médicos sabem muito, mas apenas Deus PODE TUDO !
domingo, 6 de julho de 2008
Enfim uma casa, um lar
A última semana foi uma experiência intensa e muito diferente. Novamente eu não pensei muito antes de agir, apenas fiz, fui, acreditei e felizmente tudo saiu bem ao final. Seis dias como uma família de camioneiros. Um dia em cada cidade, uma noite em cada hotel e muitas horas na estrada. Agora, finalmente, em uma casa, a casa do meu irmão em Leme.
Tudo tão diferente... tudo tão mais acolhedor.
Tantos acontecimentos, emoções, lágrimas, esperas, medos, alegrias, alívios que começaram na segunda-feira quando tive a informação de que deveria estar, na terça, bem cedo, na clínica de Campinas para começar o tratamento. A braquiterapia não é uma técnica muito usual, apenas alguns tipos de câncer fazem uso dela e por isso poucos conhecem como ela acontece e eu não fugi à regra. Não tive tempo de pesquisar na Net ou conversar com alguém que conhecesse esse tipo de radioterapia. Fui às escuras. A primeira surpresa foi a anestesia geral. A ignorância me levou a deduzir que seria algo bem mais simples, uma anestesia rápida, local para colocação de um cateter igualmente simples. Na clínica atendimento perfeito, hospitalidade, atenção, explicações e um anestesista bem jovem, bonito que disse que eu ficaria em torno de 40 minutos na sala de cirurgia para receber os "tubinhos" que dariam acesso à radiação concentrada em parte da mama. Anaterra e Doris estavam comigo. Fui calma, tranqüila e já acordei na sala de recuperação, uma hora e meia mais tarde, sem nenhuma indisposição. Só muita fome. Na mama esquerda um quadro assustador: ao contrário dos cateteres que já conhecia (a Rosanne, "amiga do peito" e o Manoel implantaram para facilitar a quimio), tinha nove "canudinhos" verdes que atravessavam minha mama de um lado a outro. Um cenário que me apavorou muito mais pela cena do que pelo incômodo. Do lado próximo à axila, umas espécies de torneirinhas que me ligavam a uma máquina barulhenta duas vezes ao dias, durante 12 minutos, cinco dias seguidos.Até sábado teria que estar, por duas vezes ao dia, na clínica de Campinas. Não podia racionalizar demais ou encontraria todos os obstáculos possíveis para de novo desistir. Era a quarta vez que tentava. A primeira em Belém, a segunda nessa mesma clínica, mas que tive que interromper para retornar urgente a Belém. Depois de novo o Ophir Loyola e a farsa da radioterapia que hoje sei, serve apenas como placebo. Não cura ninguém, não serve pra nada. Ajuda apenas psicologicamente os portadores de câncer. Precisava acreditarque dessa vez daria certo. A Anaterra em São Paulo; o Manoel hospitalizado e o Raul chegando na quinta-feira. Como ir e voltar tantas vezes ? Não importava. Iria fazer, lutaria. Eu e a Anaterra ficamos em Campinas de terça para quarta-feira. Chegamos na rodoviária do Tietê já tarde da noite. Onde escondi meu medo ? Que fim eu dei naquele temor de andar sozinha à noite ? Nem percebi que estava na maior cidade da América Latina, na maior rodoviária da região. Automaticamente fiz o que tinha que ser feito. Um táxi e já estávamos no hotel, dormindo cedo pra acordar no dia seguinte e ir esperar pelo Raul no aeroporto de Guarulhos. Não fui visitar o Manoel. Os "canudinhos" poderiam ser uma entrada de infecção e mais do que nunca preciso me preservar, ficar longe de doenças oportunistas. Os contatos foram só por telefone.
Madrugada de quinta-feira, dia 3, em breve a família se reuniria de novo. Agora em São Paulo. Pela primeira vez o Raul viajando sozinho. Mais de três horas de vôo direto. Também me mantive tranqüila, acreditando sempre que tudo sairia bem. Um mundo tão novo, tão profundo, tão intenso que só depois que acontece tomo consciência que de fato vivi.
Minha vida tem uma outra dimensão, tem uma paisagem que vai além do que vejo, do material, concreto. Muitas pessoas queridas talvez não se vejam nessa paisagem sombria, conturbada, insegura. São emergências, urgências que têm me levado a agir muito rapidamente, quase como um robô. Não esqueci ninguém, não alijei ninguém da minha vida, principalmente os que me são caros, os que de fato amo, os que tanto quero bem e que às vezes cobro colo, carinho, atenção, afeto mais do que aqueles que apenas passam na minha estrada, mas que não fizeram parada, que deixarão poucas lembranças, poucas marcas. O que de fato eu preciso é dividir esses momentos, compartilhar com os que realmente me querem bem esse turbilhão de novos sentimentos, novo lar, novos dias. Preciso demais daqueles que um gesto simples tem uma conotação gigantesca, me fazem feliz ou muito triste com um simples aceno ou falta dele. Uma frase, um abraço, uma mensagem, um telefonema e meu dia passa a ter um outro significado. Estou carente, sensível e frágil, mesmo quando pareço tão forte. Brigo e digo o que não devo (ou não queria dizer dessa forma), mas continuo amando, querendo bem, apenas demonstrando de forma diferente e às vezes incompreensível. Aos que tentam me poupar e não comentam seus problemas, uma aviso: eu quero permanecer na vida de vocês, só assim terei certeza da minha relevância. Esconder de mim o que por acaso possa estar acontecendo de ruim, não me preserva, apenas me distancia e sinto-me bem em continuar sendo solidária, amiga, companheira, mesmo que com um tempo tão escasso.
Os dias têm se atropelado, o tempo é curto para tanto a fazer, resolver. A semana mal começou e já terminou. Estou confusa com datas e situações. Às vezes me perco nas lembranças e tento identificar determinada situação sem saber exatamente se estava em São Paulo ou Campinas; se foi na quarta ou na quinta-feira. Tenho certeza apenas que na última quinta-feira bati todos os meus recordes. Depois de receber o Raul, mal o dia nascia em Guarulhos, fomos para São Paulo descansar um pouco. Às 10h os deixava na porta do ACCamargo para passar o dia com o pai. Muita emoção nesse encontro. Lágrimas dos dois. A incerteza de um reencontro certamente se desfez no abraço apertado. Como uma autêntica paulistana, segui do hospital para o metrô. Deixei a estação de Vergueiro rumo ao Tietê e de lá um ônibus para Campinas onde fiz, às 13 horas, a primeira aplicação. Um sono quase incontrolável. Entendi as pessoas que dormem em qualquer lugar, basta se encostar para cochilar. Telefonei para a Vera, colega da Embrapa que já me hospedara antes e sem cerimônia pedi uma cama pra dormir. De novo a recepção calorosa de sempre, agora, além da filha Júlia, a mãe Verena, me dando atenção, um edredon cheiroso, um bilhete na cama para que tivesse bons sonhos. Descansei e renovada voltei para clínica e só deixei Campinas à noite. Bem tarde cheguei à rodoviária do Tietê e mais tarde ainda apanhei os filhos.
Na sexta-feira saímos os três de São Paulo e aproveitamos para passar dois dias em Campinas. O sábado estava lindo, ensolarado e a proximidade do final do tratamento me deixaram até feliz. Fomos à lagoa do Taquaral onde famílias inteiras se divertiam. Uns liam, outros corriam ou apenas apreciavam a natureza exuberante. A nuvem escura que minava o nosso belo dia ficava por conta da certeza de que o Manoel não poderia estar conosco. Nem sei quando estará. Se um dia estará novamente. Temo tanto por ele. Sei da gravidade do seu quadro. Os médicos já não têm mais certeza de nada. Estão colocando todo o seu conhecimento à disposição, mas o organismo não reage, os blastos continuam presentes na medula, o que exigirá nova quimioterapia, provavelmente mais agressiva ainda. Ele vai suportar ? Não sei... não sei... Sei apenas que a cada dia ele fica mais debilitado. Além do pulmão que exige oxigênio em período integral, há suspeita de algo no intestino que pode estar causando o sangramento, que por sua vez exige maior quantidade de sangue e plaquetas, maiores dosagens de antibióticos e um mal estar generalizado que ele tenta amenizar todas as vezes que falamos com ele pelo telefone. Não quero pensar no pior. Tento me respaldar nos casos anteriores de pessoas que sofreram muito, que passaram por momentos delicadíssimos, mas que superaram tudo e hoje levam uma vida quase normal. Preciso acreditar para passar essa crença a ele, aos nossos filhos. Quero crer que um dia ele sentirá o que sinto agora quando acabei o tratamento que pode ter eliminado as células cancerígenas que porventura ainda insistiam em permanecer anônimas em minha mama esquerda. A retirada dos "canudinhos" foi menos dolorosa do que imaginara, do que a minha doente cabeça me preparou. Um a um foi puxado e no lugar pequenos buraquinhos que devem ser tratados até a cicatrização completa. Retornarei somente no final de julho para outra avaliação. Enquanto isso, tentarei rearrumar a nossa vida. Não podemos ficar muito tempo em São Paulo, embora seja o nosso desejo. Os custos com hotel são muito altos. É preciso que tenhamos nosso canto o mais breve possível. Ontem chorei muito quando parei pra pensar e vi nossas vidas resumidas a um amontoado de malas. Não temos camas, cadeiras ou mesas. Um laptop, mochilas e muita esperança é o nosso patrimônio maior neste momento.
Amanhã iremos a São Carlos pela primeira vez. Espero me apaixonar pela nova morada. Um lugar que acredito será de renovação, de alegria, de retomada de vida. Quero preparar cada cantinho com um jeito especial pra receber os que nos visitarão. Espero poder abraçar muitas pessoas queridas em breve. Um lugar que será simples, pequeno, mas que vai representar muito para nós. Raul e Anaterra felizmente estão aceitando todas as mudanças com naturalidade. Deixaram amigos de longos anos pra trás, mas em nenhum momento reclamaram ou insinuaram que não gostariam de ter me acompanhado. Sinto-me orgulhosa de ser mãe deles.
Estou menos só hoje. O Ruy se desdobra em brincadeiras e atenção, mesmo que as lágrimas desobedientes muitas vezes se manifestem. A Dóris tenta nos agradar de todas as formas. Incansável, companheira, amiga e que tem me ajudado muito a entender cada dia dessa tragédia que se abateu sob nós. A Ana Júlia com a sua calma e doçura só nos dá mais segurança. Tudo o que precisamos neste momento: mais do que um lugar para dormir ou comer, um lar para deitar e descansar o corpo e a alma, reabastecer as energias e os sonhos. Renascer das cinzas e acreditar que viver vale a pena e que a felicidade está sempre nos aguardando. Basta querer vê-la.
Tudo tão diferente... tudo tão mais acolhedor.
Tantos acontecimentos, emoções, lágrimas, esperas, medos, alegrias, alívios que começaram na segunda-feira quando tive a informação de que deveria estar, na terça, bem cedo, na clínica de Campinas para começar o tratamento. A braquiterapia não é uma técnica muito usual, apenas alguns tipos de câncer fazem uso dela e por isso poucos conhecem como ela acontece e eu não fugi à regra. Não tive tempo de pesquisar na Net ou conversar com alguém que conhecesse esse tipo de radioterapia. Fui às escuras. A primeira surpresa foi a anestesia geral. A ignorância me levou a deduzir que seria algo bem mais simples, uma anestesia rápida, local para colocação de um cateter igualmente simples. Na clínica atendimento perfeito, hospitalidade, atenção, explicações e um anestesista bem jovem, bonito que disse que eu ficaria em torno de 40 minutos na sala de cirurgia para receber os "tubinhos" que dariam acesso à radiação concentrada em parte da mama. Anaterra e Doris estavam comigo. Fui calma, tranqüila e já acordei na sala de recuperação, uma hora e meia mais tarde, sem nenhuma indisposição. Só muita fome. Na mama esquerda um quadro assustador: ao contrário dos cateteres que já conhecia (a Rosanne, "amiga do peito" e o Manoel implantaram para facilitar a quimio), tinha nove "canudinhos" verdes que atravessavam minha mama de um lado a outro. Um cenário que me apavorou muito mais pela cena do que pelo incômodo. Do lado próximo à axila, umas espécies de torneirinhas que me ligavam a uma máquina barulhenta duas vezes ao dias, durante 12 minutos, cinco dias seguidos.Até sábado teria que estar, por duas vezes ao dia, na clínica de Campinas. Não podia racionalizar demais ou encontraria todos os obstáculos possíveis para de novo desistir. Era a quarta vez que tentava. A primeira em Belém, a segunda nessa mesma clínica, mas que tive que interromper para retornar urgente a Belém. Depois de novo o Ophir Loyola e a farsa da radioterapia que hoje sei, serve apenas como placebo. Não cura ninguém, não serve pra nada. Ajuda apenas psicologicamente os portadores de câncer. Precisava acreditarque dessa vez daria certo. A Anaterra em São Paulo; o Manoel hospitalizado e o Raul chegando na quinta-feira. Como ir e voltar tantas vezes ? Não importava. Iria fazer, lutaria. Eu e a Anaterra ficamos em Campinas de terça para quarta-feira. Chegamos na rodoviária do Tietê já tarde da noite. Onde escondi meu medo ? Que fim eu dei naquele temor de andar sozinha à noite ? Nem percebi que estava na maior cidade da América Latina, na maior rodoviária da região. Automaticamente fiz o que tinha que ser feito. Um táxi e já estávamos no hotel, dormindo cedo pra acordar no dia seguinte e ir esperar pelo Raul no aeroporto de Guarulhos. Não fui visitar o Manoel. Os "canudinhos" poderiam ser uma entrada de infecção e mais do que nunca preciso me preservar, ficar longe de doenças oportunistas. Os contatos foram só por telefone.
Madrugada de quinta-feira, dia 3, em breve a família se reuniria de novo. Agora em São Paulo. Pela primeira vez o Raul viajando sozinho. Mais de três horas de vôo direto. Também me mantive tranqüila, acreditando sempre que tudo sairia bem. Um mundo tão novo, tão profundo, tão intenso que só depois que acontece tomo consciência que de fato vivi.
Minha vida tem uma outra dimensão, tem uma paisagem que vai além do que vejo, do material, concreto. Muitas pessoas queridas talvez não se vejam nessa paisagem sombria, conturbada, insegura. São emergências, urgências que têm me levado a agir muito rapidamente, quase como um robô. Não esqueci ninguém, não alijei ninguém da minha vida, principalmente os que me são caros, os que de fato amo, os que tanto quero bem e que às vezes cobro colo, carinho, atenção, afeto mais do que aqueles que apenas passam na minha estrada, mas que não fizeram parada, que deixarão poucas lembranças, poucas marcas. O que de fato eu preciso é dividir esses momentos, compartilhar com os que realmente me querem bem esse turbilhão de novos sentimentos, novo lar, novos dias. Preciso demais daqueles que um gesto simples tem uma conotação gigantesca, me fazem feliz ou muito triste com um simples aceno ou falta dele. Uma frase, um abraço, uma mensagem, um telefonema e meu dia passa a ter um outro significado. Estou carente, sensível e frágil, mesmo quando pareço tão forte. Brigo e digo o que não devo (ou não queria dizer dessa forma), mas continuo amando, querendo bem, apenas demonstrando de forma diferente e às vezes incompreensível. Aos que tentam me poupar e não comentam seus problemas, uma aviso: eu quero permanecer na vida de vocês, só assim terei certeza da minha relevância. Esconder de mim o que por acaso possa estar acontecendo de ruim, não me preserva, apenas me distancia e sinto-me bem em continuar sendo solidária, amiga, companheira, mesmo que com um tempo tão escasso.
Os dias têm se atropelado, o tempo é curto para tanto a fazer, resolver. A semana mal começou e já terminou. Estou confusa com datas e situações. Às vezes me perco nas lembranças e tento identificar determinada situação sem saber exatamente se estava em São Paulo ou Campinas; se foi na quarta ou na quinta-feira. Tenho certeza apenas que na última quinta-feira bati todos os meus recordes. Depois de receber o Raul, mal o dia nascia em Guarulhos, fomos para São Paulo descansar um pouco. Às 10h os deixava na porta do ACCamargo para passar o dia com o pai. Muita emoção nesse encontro. Lágrimas dos dois. A incerteza de um reencontro certamente se desfez no abraço apertado. Como uma autêntica paulistana, segui do hospital para o metrô. Deixei a estação de Vergueiro rumo ao Tietê e de lá um ônibus para Campinas onde fiz, às 13 horas, a primeira aplicação. Um sono quase incontrolável. Entendi as pessoas que dormem em qualquer lugar, basta se encostar para cochilar. Telefonei para a Vera, colega da Embrapa que já me hospedara antes e sem cerimônia pedi uma cama pra dormir. De novo a recepção calorosa de sempre, agora, além da filha Júlia, a mãe Verena, me dando atenção, um edredon cheiroso, um bilhete na cama para que tivesse bons sonhos. Descansei e renovada voltei para clínica e só deixei Campinas à noite. Bem tarde cheguei à rodoviária do Tietê e mais tarde ainda apanhei os filhos.
Na sexta-feira saímos os três de São Paulo e aproveitamos para passar dois dias em Campinas. O sábado estava lindo, ensolarado e a proximidade do final do tratamento me deixaram até feliz. Fomos à lagoa do Taquaral onde famílias inteiras se divertiam. Uns liam, outros corriam ou apenas apreciavam a natureza exuberante. A nuvem escura que minava o nosso belo dia ficava por conta da certeza de que o Manoel não poderia estar conosco. Nem sei quando estará. Se um dia estará novamente. Temo tanto por ele. Sei da gravidade do seu quadro. Os médicos já não têm mais certeza de nada. Estão colocando todo o seu conhecimento à disposição, mas o organismo não reage, os blastos continuam presentes na medula, o que exigirá nova quimioterapia, provavelmente mais agressiva ainda. Ele vai suportar ? Não sei... não sei... Sei apenas que a cada dia ele fica mais debilitado. Além do pulmão que exige oxigênio em período integral, há suspeita de algo no intestino que pode estar causando o sangramento, que por sua vez exige maior quantidade de sangue e plaquetas, maiores dosagens de antibióticos e um mal estar generalizado que ele tenta amenizar todas as vezes que falamos com ele pelo telefone. Não quero pensar no pior. Tento me respaldar nos casos anteriores de pessoas que sofreram muito, que passaram por momentos delicadíssimos, mas que superaram tudo e hoje levam uma vida quase normal. Preciso acreditar para passar essa crença a ele, aos nossos filhos. Quero crer que um dia ele sentirá o que sinto agora quando acabei o tratamento que pode ter eliminado as células cancerígenas que porventura ainda insistiam em permanecer anônimas em minha mama esquerda. A retirada dos "canudinhos" foi menos dolorosa do que imaginara, do que a minha doente cabeça me preparou. Um a um foi puxado e no lugar pequenos buraquinhos que devem ser tratados até a cicatrização completa. Retornarei somente no final de julho para outra avaliação. Enquanto isso, tentarei rearrumar a nossa vida. Não podemos ficar muito tempo em São Paulo, embora seja o nosso desejo. Os custos com hotel são muito altos. É preciso que tenhamos nosso canto o mais breve possível. Ontem chorei muito quando parei pra pensar e vi nossas vidas resumidas a um amontoado de malas. Não temos camas, cadeiras ou mesas. Um laptop, mochilas e muita esperança é o nosso patrimônio maior neste momento.
Amanhã iremos a São Carlos pela primeira vez. Espero me apaixonar pela nova morada. Um lugar que acredito será de renovação, de alegria, de retomada de vida. Quero preparar cada cantinho com um jeito especial pra receber os que nos visitarão. Espero poder abraçar muitas pessoas queridas em breve. Um lugar que será simples, pequeno, mas que vai representar muito para nós. Raul e Anaterra felizmente estão aceitando todas as mudanças com naturalidade. Deixaram amigos de longos anos pra trás, mas em nenhum momento reclamaram ou insinuaram que não gostariam de ter me acompanhado. Sinto-me orgulhosa de ser mãe deles.
Estou menos só hoje. O Ruy se desdobra em brincadeiras e atenção, mesmo que as lágrimas desobedientes muitas vezes se manifestem. A Dóris tenta nos agradar de todas as formas. Incansável, companheira, amiga e que tem me ajudado muito a entender cada dia dessa tragédia que se abateu sob nós. A Ana Júlia com a sua calma e doçura só nos dá mais segurança. Tudo o que precisamos neste momento: mais do que um lugar para dormir ou comer, um lar para deitar e descansar o corpo e a alma, reabastecer as energias e os sonhos. Renascer das cinzas e acreditar que viver vale a pena e que a felicidade está sempre nos aguardando. Basta querer vê-la.
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